A terra por baixo da terra
O belo e o grotesco n'A Criatura de João Gabriel Oliveira (e algumas atualizações)
A água quente do banho desata, aos poucos, os nós do seu corpo e da sua mente. Ele suspira, aliviado, sentindo a tensão escorrer pelas suas pernas ensaboadas, ralo abaixo, os pensamentos dissolvidos no vapor, toda a matéria se tornando macia.
Era realmente abençoado por ter a flor na casa, sua presença sinestésica, redenção manifesta. Sentia seu cheiro vivo e fértil, seu toque macio e doce, suas pétalas, uma pirotecnia de tons… Tão viva e febril quanto as noites de fogaréu, quando as tochas ritualísticas desfilam pela cidade de Goiás, iluminando as ruas de pedra e as túnicas de tafetá do farricocos. É fogo! É sangue! É brasa! O caule fibroso, tenro, mas firme, firme o suficiente para atravessar a rachadura,
vazia, rasgar o solo por baixo da sala, o solo sólido, o solo escuro, e a semente partida sobre a lenta pressão da terra, e a raiz debruçada sobre o infinito abismo, e bebendo dele, infinitamente, silenciosamente.
A terra por baixo da terra é antiga e viva. É maciça, mas movediça, revirada por plantas e fungos e todos os seres rastejantes; é fértil e morta, podre e primitiva, ela guarda a memória de toda a vida que foi enterrada e a potência de toda aquela que ainda virá. As raízes conversam umas com as outras a sete palmos do chão, os insetos sussurram, consumindo e conspirando, os decompositores, comensais silenciosos, mastigam a terra úmida, as cascas grudam em seus dentes, o caldo escorre doce de suas bocas. A vida e a morte pulsam vagarosamente na terra por baixo da terra.
A Criatura
No final de 2021, João Gabriel nos presenteou com um original grampeado dentro de uma pastinha. Era sua Criatura. Levei (Marília) para o sítio dos meus pais, e devorei as 150 páginas de cerrado goiano em três dias, ao som das aves da serra catarinense. Da experiência imersiva, saí com um veredito: precisamos publicá-lo.
A Criatura é o resultado de seis meses de trabalho a várias mãos, com revisão do Felipe e da mãe do João, ilustração do Victor Libório, capa e tipografia do Bruno Abatti e diagramação minha. E, claro, montagem e artesania da Casatrês. É nosso primeiro trabalho em serigrafia: um texto com tanta textura merece uma capa em relevo com essa ilustração que arranca suspiros estéticos.
Para escrever, João se inspirou de forma muito peculiar em um álbum do Radiohead, nos poemas de um tio falecido, na sua vivência com os seres do cerrado, na genealogia dos homens da família e um monte de outras coisas que ele organizou em colagens e painéis. Quando fomos visitá-lo para conversar sobre a publicação, ele tirou uma pasta abarrotada do guarda-roupas e se pôs a espalhar a papelada mística pela cama. Era tanto material interessante e bonito — ainda que altamente fragmentado e incompreensível para quem olhava pela primeira vez —, que achamos uma boa ideia organizar parte dessas referências em um site do hotglue. Convido vocês a explorar esse painel virtual:
Em um só livro, João manifesta drama existencial, humor e ironia, texto justificado e poema concreto, cidade e floresta, humano e não humano. Tudo isso com um toque surrealista & de visibilidade dos seres vivos e folclóricos do cerrado. A narrativa expõe, aos poucos, as fissuras emocionais hereditárias de um homem cuja vontade de criação é impulsionada pela insistência na genialidade. Sua relação com as criaturas da floresta é uma porta que se abre para a integração da pulsão criadora com a submissão necessária para conviver com forças ecossistêmicas maiores que as vontades humanas. A Criatura fala de uma natureza que é suave e violenta ao mesmo tempo — bela por ser grotesca, e grotesca por ser bela.
Ou seja, entrega tudo. Inclusive ótimos vídeos de divulgação:
Se você se interessou pela história, pode adquirir o livro no nosso site ou respondendo a este e-mail. Eu, pessoalmente, recomendo muito (rs).
Agora, vamos às notícias e atualizações:
Últimos dias para se inscrever
no nosso programa de parcerias. Para quem ainda não ficou sabendo, estamos selecionando pessoas interessadas em receber cinco livros da Casatrês, um por mês, mais uns mimos. A contrapartida é elaborar e publicar nas redes sociais, em forma de texto ou vídeo, pelo menos um conteúdo (como uma resenha) sobre o livro do mês. Se você gosta de ler e falar sobre livros, e tem tempo para ler um livro por mês, se inscreve aqui.
Precisamos falar sobre literatura marginal
É o que diz Cellina Muniz em sua resenha no Saiba Mais, jornal do RN, sobre Chama com dois olhos andando, de Ezus:
O adjetivo marginal pode ser tanto relativo à abordagem de temas ligados à vida de quem está efetivamente “às margens” da sociedade, numa referência a personagens social e economicamente excluídos e marginalizados, à maneira, por exemplo, de “Estação Carandiru” de Dráusio Varela ou “Cidade de Deus” de Paulo Lins. Por outro lado, o caráter marginal pode estar diretamente ligado ao próprio livro e seus processos de produção e circulação. Nesse sentido, há que se considerar que, para além dos “medalhões” das academias e feiras literárias ou das listas de títulos mais vendidos pelas grandes editoras e livrarias, há uma gama enorme de autores e obras que acontecem em esferas menos visíveis, mas que acontecem, enfim, saibamos de sua existência ou não.
Nosso último lançamento ainda está com frete grátis no site. Aproveitem porque Cbama é, definitivamente, uma dessas pérolas da literatura contemporânea brasileira que existem paralelamente ao circuito “convencional”.
Feira de publicações independentes em Florianópolis
No próximo domingo, dia do livro, estaremos na Letraria expondo com outras nove editoras independentes de Florianópolis. A Feira de Publicações Independentes é uma iniciativa da Letraria Livros, realizada em colaboração com a Caseira Editora e apoio do Multi Open Shopping (Rio Tavares).
Além da Feira, a programação terá Contação de Histórias para o público infantil do livro Pote Vazio com @isabelfrancisco888 às 16h e Oficina de Encadernação Artesanal para iniciantes com @marivargasc_ às 17h.
Um abraço e até domingo!