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Como nasce uma editora e a gratificação & frustração em igual medida
Escritora e editora, Ana Elisa Ribeiro lança suas faíscas e chispas sobre o ofício de editar
Esta vigésima niusleter da Casatrês é dedicada à reprodução (uma vez que copyleft) de um trecho do livro Como nasce uma editora, da escritora e editora mineira Ana Elisa Ribeiro. Ao lado das também editoras Samara Coutinho e Cecília Castro (esta a quem tive o prazer de conhecer, pessoalmente, na Feira Motim, Brasília, em maio deste ano), Ana Elisa está à frente da Entretantas, que surgiu no ano passado e cujo intuito é “publicar textos acadêmicos e ensaios que discutem a temática editorial, em volumes cheio de bossa e cuidado gráfico”.
Como nasce uma editora, ensaio curto e arrojado, que não ultrapassa cinquenta páginas de uma caprichada edição de bolso, bem pequenina, conta com um bom prefácio de uma outra colega de ofício, inspiradora pela proposta e estética dos livros que publica e pela força e jogo de cintura de estar há anos no rolê do meio editorial independente, à margem etc. Falo de Larissa Mundin, da editora negalilu, de Goiânia.
O texto de Ana Elisa Ribeiro tem o ritmo e a ginga de uma boa malandra, mulher brasileira, que vive a gratificação e frustração do ofício e sabe bem do que está falando: texto esperto, mordaz, que desromantiza o meio, mas entrega outra paixão, esta mais palpável e em conformidade com o cotidiano de gente que edita da famigerada forma independente; texto ágil e preciso que, sobretudo, destrincha a arte de editar para ampliar seu sentido e significado — editar textos é uma infinidade de coisas, com uma outra infinidade de possibilidades.
Não me delongo mais. O texto fala por si. Mas é apenas um trecho, seu começo. A quem interessar, vale a pena entrar em contato com a Entretantas e ver se ainda restam alguns da tiragem.
Ela, ela quem?
Há uma ambiguidade difícil de enfrentar no título deste pequeno ensaio. É possível que o leitor e a leitora não tenham ainda certeza do assunto de que trato aqui, e simplesmente porque em português uma editora pode ser tanto uma empresa ou um empreendimento quanto uma pessoa, uma mulher, uma empreendedora, uma aventureira, uma rebelde, uma subversiva, mas também uma submissa.
Uma editora é, em definição livre (por que não?), o espaço, físico e/ou simbólico, que publica textos textos — em sentido expandido; alguns dirão que ela publica livros, uma vez que transforma textos em livros. No entanto, também a noção de livro não está dada. Sua instabilidade, sempre afetada por questões tecnológicas, entre outras, anda hoje muito evidente diante de tantas possibilidades de livros, tantas configurações, formatos ou materialidades que eles podem ter. Uma editora publica livro, mas também outras peças, que podem circular materialmente de maneiras distintas e diversas, sendo a circulação exatamente um dos pontos-chaves para se pensar e se considerar a respeito de uma editora e suas finalidades.
Se a primeira imagem que nos ocorre do que seja uma editora tem relação, necessariamente, com um edifício, um escritório, um endereço físico, pode ser que tenhamos de refinar ou, ao contrário, espessar, nossos critérios a fim de abranger uma série de empreendimentos que não cabem nessa imagem. Uma editora, afinal, pode não se localizar num edifício exclusivo, não ter um endereço comercial e mesmo não passar da atitude publicadora de um indivíduo (homem, mulher ou).
Uma editora costuma nascer de um desejo. Há alguns anos lendo sobre isso e ouvindo depoimentos sobre como editar, por que editar, com paixão & raiva, gratificação & frustração em igual medida, recolhi, mesmo que sem grande sistematização, uma série de momentos-origem ou faíscas ou chispas ou essa coisa mínima-mas-determinante que faz com que uma pessoa se torne, às vezes sem demora, uma editora. Sem endereço, sem documentos, sem cadastro de pessoa jurídica, sem ISBN, sem sequer uma direção clara, uma linha editorial explícita. Algumas editoras nascem, por exemplo, da raiva. Não são raros os casos de empreendimentos contemporâneos que respondem à ausência de espaços de publicações para vozes/escritos que não costumam ser percebidos — ou mesmo aceitos — por casas editoriais mais convencionais. Algumas editoras declaradamente feministas ou publicadoras de autorias lgbtqia+ ou negras ou interseccionalmente, claro, nascem de uma atitude publicadora que quer ocupar espaços editoriais e discursivos em disputa. Nascem da percepção de que editar e publicar são atitude, são política, são gesto, são entrar em campo. Em desvantagem, na maioria das vezes, mas certamente criando ruído, tornando as coisas mais tensas, de uma tensão necessária, desnaturalizando, incomodando, fazendo que adensem os debates, que se suba o tom.
Uma editora nasce da falta também. Da percepção de que há algo a dizer que não vem sendo dito, de que os catálogos mais visibilizados podem criar uma harmonia que se confunde com hegemonia, e é preciso atuar aí, desafinar o coro. De repente, uma editora nasce de um primeiro livro — uma primeira publicação — que cria uma dissensão. Uma editora pode vir para dizer “mas”, ou pode fingir-se disso para ser parte do que já aí está. Uma editora pode nascer das entrelinhas, pinçando o que não está claramente dito, tirando algo dos rodapés e levando às linhas principais, o corpo do texto. Uma editora dá corpo, dá vida, sem necessariamente ser um corpo grosso. Muitas vezes ela será um lampejo; outras ela terá um ciclo de vida largo, sendo pequena ou não.
Uma editora pode nascer porque responde à falta de espaço simbólico. A escassez de espaço físico não faz sentido aqui. Uma editora responde sim aos que se cansaram de ouvir/ler não. E aí as pessoas que fazem nascer essas editoras acordam um dia e pensam: por que não eu? E parte dessa espécie de empoderamento (paciência) vem com as tecnologias digitais e as facilidade de edição que elas trouxeram. Não é para poucos, não é para especialistas apenas, não é para escolhidos, não é só para herdeiros, não é mais. O passadiço interditado, difícil, entre ser autor e ser editor, autora e editora, por exemplo, ruiu, ao menos parcialmente. Ou, mais propriamente, esse passadiço hoje tem trânsito. O trânsito entre autor e editor, autoeditor, editor de si e dos outros, é hoje muito mais fluido, embora editar e publicar um livro envolva, ainda, dimensionamentos e escalas que nem todos/as podem alcançar.
Nasce uma editora quando os não se acumulam e uma série de elementos se reúnem entre os desejos, as febres, os sonhos e as raivas de uma pessoa que, então, se interpõe. Se não fazem, vou fazer. Se não há espaço, vou criá-lo.