(Os comentários e haibuns entre linhas são do Moreno. As legendas e demais comentários, da Marília.)
Fomos a Brasília no último final de semana, participar da feira Motim. Um sucesso: movimento estrondoso, gente interessada não só nas artes gráficas (que eram maioria na feira), mas também em livros e outras invenções independentes.
Lançamos o livro do kuzman, água de romãs, no lugar onde foi escrito, e muita gente pôde levar para casa seu exemplar autografado. O kuzman (Gusmão), aliás, nos arrumou lugar pra ficar, a casa da Lívia e do Martino. A Lívia é escritora e estava lançando seu romance na Motim, Em Brasília, setembro. Só quando chegamos na porta de seu prédio soubemos que Gusmão e Lívia são amigos de longa data e trabalham juntos.
A janela do quarto onde estamos abrigados é enorme. Dá de frente para uma árvore frondosa. Às sete da manhã, tempo aberto como se fosse meio-dia, recebemos visitas. Alastrados, barulhentos, em bando: papagaios pequenos ou maritacas? Importa é que são preciosos. Um casal se aconchega no galho longo e trocam carinhos.
ar seco, ar da graça —
na janela um azul amplo
e maritacas
E, então, aproveitamos a carona para ir conhecer pessoalmente nosso amigo kuzman.
Eis que eles trabalham num anexo do Palácio do Itamaraty, conhecido como Bolo de noiva, por ter sido construído em camadas circulares. Um dos únicos lugares que conhecemos com apelido carinhoso (destacando-se dos setores, quadras, blocos, anexos, todos compostos por números e letras padronizadas e sem lirismo).
O kuzman aproveitou seu tempinho livre para nos levar num passeio guiado pelo palácio e, a cada curva, surgia algo novo e totalmente inesperado para um prédio administrativo.
Apreciando os jardins internos do Bolo de Noiva. Luz incrível, azulejos estilosos e canteiros de invejar qualquer hipster.
E aí o kuzman nos levou ao andar superior, uma espécie de museu, com objetos antiquíssimos de origens variadas. Esbarramos com esse jardim, mais uma das ambíguas composições de concreto com plantas do palácio, que confundem o senso estético de quem preza pelo minimalismo e as construções integradas ao ambiente.
Porque Brasília foi feita para humanos e sufocou muitos tipos de vida (inclusive humana) para chegar a essa complexidade arquitetônica. Mas os olhos gostam de ver esses jardins internos; esses vãos enormes sem colunas; os arcos emoldurando a vista do planalto; os mármores; os seixos cuidadosamente colocados do maior para o menor, de fora para dentro; os arranjos nada selvagens. É difícil de admitir que tanto concreto possa fazer beleza limitando os espaços onde o verde pode brotar.
Mulheres rechonchudas me emocionam (mas eu não saberia explicar essa minha expressão facial na foto). As ancas, as pancinhas, os pés e pernas enormes, aterrando-se confortavelmente ao barro vermelho que eu imaginei sob a escultura. O olhar dessas duas amigas não perdoa ninguém e enquanto isso elas tocam, suavemente, suas mãos, sem se preocupar em cobrir nada com o pano. Juntas, estão seguras.
As divisórias de vidro estão sendo travadas por essas cunhas de madeira. | O teto está meio caindo, com relógios parados às três e pouco da tarde, só deus sabe desde quando. | Tem serviço de engraxate, barbeiro, cabeleireira e manicure dentro do prédio.
Há de se proteger do sol e se hidratar constantemente. A secura de Brasília é implacável. E daqui para frente, nos disseram, só vai piorar. Volta a chover em outubro.
O Planalto Central não adentrou o período de seca (agosto e setembro), mas já é seco. Para quem vem do litoral, cuja vida é oxigenada pelos ares úmidos, acostuma-se com mofos em roupas guardadas, Brasília sempre será seco, muito seco. Marília sofre mais: no terceiro dia, sente a pele ressecar, a cabeça e o corpo doerem, a pressão cai.
Segunda de manhã, perambulamos pela Esplanada dos Ministérios, Praça dos Três Poderes e afins. Sob o sol duro, Marília começa a passar mal. Uma segurança e uma brigadista da sala de protocolo do Ministério da Justiça, atenciosas e gentis, atendem Marília, medem sua pressão.
Durante quarenta minutos, ela fica deitada na maca, pés para cima. Eu a aguardo na cadeira de plástico, tomo um café de recepção (copinho descartável, ultradoce) e proseio com as duas servidoras. Adriana, a brigadista, é boa de papo, diz que ama o litoral e que, se pudesse, se mudaria para João Pessoa: “Quando me aposentar, não penso duas vezes”. Depois, entre a piada e a nota de prevenção, adverte Marília: “Você não me ponha o pé nesta cidade em agosto e setembro, hein?”.
Somos caiçaras arriscando um passeio candango, riscando os calçados no chão árido. Brasília é ainda mais planejada do que imaginei. E também mais arborizada.
Intervenções humanas e não humanas no entorno do Palácio do Congresso.
A primeira coisa que o Moreno comentou ao ler a placa na entrada do Palácio foi: “Erraram ali na data de nascimento e morte do Niemayer. Tinha que ser meia-risca, colocaram hífen” (entenda). Descansa, editor.
Fim de feira (Caneta BIC e pisoteamento de visitantes da feira Motim sobre Vergê 120g/m², composição com flor cansada de jasmim manga. Outono/2023)
Brasília, surpreendentemente arborizada, é tomada por grandes árvores. Uma delas, antiga, firme e calma feito um Buda, perto da Praça dos Três Poderes, guarda resquícios de uma barbárie colorida, delírio patriótico: nos galhos mais altos, retalhos desbotados de uma enorme bandeira da nação. Retalhada, desbotada — simbólica.
o verde e amarelo
não conservou; que feliz:
o Brasil decaiu
*
Garganta seca, sede, últimos goles d’água nas garrafinhas. Não há comércio em torno da feira Motim. Concreto e amplidão: os olhos chegam longe e, sensação desértica, não encontram uma barraquinha sequer. Para contestar os olhos, os pés se lançam no trajeto. No fim, tem a mesma resposta que a visão: não há comercio no raio de 600 metros da feira, nem uma barraquinha sequer. Mesmo sedento, continuo a caminhada, a fim de explorar. Concreto e amplidão: no vão aberto, feito um salão (parecido com os do Itamaraty, inclusive, exceto pelo aspecto público, sujo), cerca dez moleques andam de skate. Nada mais que dois moleques que andam de skate e dois moradores de rua, um que bate-boca com um dos skatistas e outro que, alheio, chacoalha o corpo em sofisticada coreografia.
um chafariz seco —
skatistas rodeiam; dentro
um mendigo dança
*
Vejo a lua da cabine do avião. O progresso, que custa muito caro, nos leva às alturas, para todos os cantos, rápido. Mas o progresso também cairá. Desembarco. E o luxo do aeroporto, sua logística monumental, sugere que o progresso, além de inexorável, é indestrutível. O progresso nos oferece confortos extravagantes, vende a narrativa de que nada pode impedir seu fluxo. Mas o progresso, mais rápido que imaginamos, virá abaixo, ou será virado do avesso. Me sento na sala de embarque, em frente aos vidros que transparecem a pista de decolagem. Outros aviões estão estacionados. Quantas aeronaves comerciais há no mundo? Quantos voos, cada qual com sua nova marca de carbono no ar, acontecem num só dia? Como pôde um símio ter construído algo como o avião?
turbina do avião —
o progresso me perplexa
força estratosférica
Que delícia de relato!
brasília encanta e exaspera em tantas medidas q só mesmo vivendo aqui para gostar. feliz demais em recepcioná-los e ler seu relato de viagem! =D