Da nossa cozinha, que construímos à mão, no nível do mar, temos visão privilegiada da enorme montanha viva. Estava adormecida há séculos, mas já faz algumas semanas que começou a emitir suspiros de fumaça. Somos os únicos por aqui. Todos em volta evacuaram a área, mas escolhemos ficar. O resto do país também será afetado, não há o que fazer. Com a crise hídrica e de produção de alimentos, a população foi reduzida a poucos milhares (nós estamos dessalinizando água há mais de um ano, graças a um sistema caseiro que desenvolvemos, e plantamos nossa própria comida há algum tempo. Tantas outras famílias não tiveram a mesma sorte ou oportunidade). Apesar da esperança, desse impulso de sobrevivência, reforçado por padres e jornalistas, sabemos que não tem volta. A espécie humana deixará de ocupar mais este continente e, assim, caminhamos rumo à extinção completa.
Eu e meu companheiro apreciamos nossos últimos momentos neste mundo preparando um doce de leite de coco. A calda de açúcar, viscosa e de um brilho dourado, é coberta pelo leite branco e morno. É como a própria lava incandescente de um vulcão a se endurecer em contato com a água. Puxo a calda para cima com a colher e admiro como ela se mistura levemente com o leite, pintando-o de caramelo, mas permanece coesa mesmo quando eu a giro para fazer esculturas efêmeras, sólidas e fluidas feito vidro com o passar do tempo. Nossa janela ampla nos permite olhar aquele mar que foi nossa inspiração, alento e fonte de vida. Ele está parado, um tapete refletindo o céu acinzentado, um espelho de braços abertos para receber o choro daquela montanha, poderosa e triste, prestes a expurgar a dor de um ser gentil e castigado. Ficamos porque compartilhamos da sua tristeza, como se pudéssemos nos consolar uns aos outros, nós, o mar, e a montanha.
Uma tempestade de raios se faz em meio à fumaça, que aumenta a cada minuto. Moreno estremece. Eu o abraço com força. Quero que você saiba que eu te amei muito, que eu fui infinitamente feliz ao teu lado. E que, se existe uma vida depois desta, a gente vai se encontrar lá. O céu fica cada vez mais escuro. Abraçados, miramos os clarões. Minha maior tristeza é que não deu tempo. Não deu tempo de ser mãe, de ver meus filhos crescendo com a possibilidade de se tornarem criaturas mais respeitosas do que eu com a montanha, o mar e os restos de mata. Matamos tudo tão rápido. Matamos rios inteiros, matamos irmãos e irmãs de outras espécies e, acima de tudo, matamos qualquer possibilidade de futuro.
Sentamos na cama. Dou uma colherada no doce e passo para ele. Segurando o pote, ele olha pela janela do quarto, que também permite uma vista do vulcão. Sabe, depois da erupção vai se instaurar uma frente fria em poucos minutos. Vai ficar tão frio e o ar tão escasso em oxigênio, por causa da fumaça, que vamos sentir muito sono. A gente vai morrer dormindo, então? Bom, quem puder estar dentro de casa, provável que sim. Uma nuvem sólida, cor de chumbo, forma-se acima da montanha e se move rapidamente na direção da nossa casa. A paisagem e o quarto assumem uma cor cinza-azulada e a temperatura cai drasticamente. Levantamos as cobertas e nos aninhamos. Pode ser que algumas pessoas consigam acordar, depois desse frio. Dou colheradas até acabar com o doce, como se pudesse guardar energia e hibernar feito um urso. Mas aí, quando elas acordarem, vai estar tão quente que não vão poder tocar em nada. No máximo, vai dar pra pegar na terra, se despedir. Será que não é melhor se matar, então? Olha, muita gente já fez isso, mas eu prefiro não fazer. Acho que a gente deve isso à Mãe. Para mim, é fugir da responsabilidade. Se chegamos até aqui, foi culpa nossa e temos que lidar com isso, mesmo que seja com sofrimento. Apesar do medo e da sensação de que levamos a filosofia da coerência a níveis extremos, concordo. Meu peito aperta com os estrondos do outro lado do mar. A erupção começou. Pequenas rochas caem no nosso telhado, fazendo som de granizo. Meu bem, não quer ficar aqui pertinho? Tudo o que eu quero é ficar pertinho, meu mandacaruzinho. Nos abraçamos deitados pela última vez, sentindo nossas últimas respirações, o cheiro dos nossos lençóis, a sensação do coração do outro batendo, batendo, batendo.
Ética do reencantamento
Sonho muito com vulcões.
Talvez seja porque cresci olhando para o Cambirela que, ao que tudo indica, era um vulcão. Comecei a ter esses sonhos quando me recaiu a consciência de que vivemos um período de transição muito grave e intenso, um fim de mundo. E são muitos os sonhos com outros tipos de fim de mundo, também.
Os estudos e as muitas tentativas de falar sobre o colapso ecológico-civilizacional tornaram explícito que vivemos um momento de desencantamento, de secularização e datificação da vida. E, como muitas outras pessoas que estudam o tema, acredito que parte da atuação que artistas precisamos ter nesta realidade de desmoronamento é a de possibilitar novas subjetividades, a partir de uma ética de reencantamento do mundo, para que possamos atravessar este momento. Porque o fundamento do que nos trouxe até aqui é antropocêntrico. E, para nos colocarmos dentro da teia da vida, para que possamos diminuir nossa própria importância frente às outras espécies, o reencantamento é necessário. Narrativas escritas e imagéticas que nos permitam incorporar humildade e integração, que nos permitam sentir, de fato, o valor intrínseco — ante o valor utilitário, de recurso —, a complexidade e a sensibilidade de cada ser, de cada paisagem, de cada bioma.
Temos acesso a algumas dessas narrativas todas as noites, através dos sonhos. Mas esse acesso está em disputa. Cada vez menos, somos capazes de lembrar de nossos sonhos. Estamos perdendo uma fonte ancestral e inesgotável de sabedoria e criatividade por conta do modo de vida urbanizado e, principalmente, por conta das luzes artificiais e do uso constante de telas. O território do sonho é uma fronteira com o capitalismo, algo que, se não preservarmos, pode ser, também, colonizado. Por enquanto, não somos capazes de produzir enquanto dormimos, e isso é uma dádiva. O sono ainda é um território imune e resistente a nos ofertar encontros íntimos com uma realidade encantada, individual e coletiva. A prática de sonhar pode ser, então, essa nascente que jorra do inconsciente para a vida acordada, para fundamentar nossas ações na vigília. Pois é complexidade fundante de nosso tempo tentar pensar outras formas de viver a partir de uma inserção no mundo baseada em relações e experiências adoecidas e colonizadas pela subjetividade antropocêntrica/capitalista/patriarcal. Isso não é dizer que o sonho também não traga elementos desta subjetividade, mas ele carrega a possibilidade de manifestar algo totalmente diferente. O sonho não é eficiente: os símbolos e cenas são, muitas vezes, rodeios e mais rodeios, como uma poesia lírica que produz um significado não literal, que se faz mais sentida e experimentada do que pensada, mas que pode, também, ser racionalizada.
Dentre meus sonhos mais frequentes, estão os com grandes desastres e iminência de desastres envolvendo vulcões, inundações, bombas atômicas e choque de outros planetas com a Terra. Estes sonhos me interessam porque, ainda que sejam representação de aflições pessoais, também são manifestações, comunicações do não humano na psique humana. São sonhos com desfechos coletivos.
O sonho permite atingir uma conexão emocional com a situação de catástrofe que não pode ser atingida pelos dados. Se eu não sonhasse com inundações e vulcões, não poderia sentir — ainda que como ensaio — o desespero de tentar correr da maré ou da lava.