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Olhando da beira do abismo
Com a curiosidade de quem vê uma fruta pela primeira vez e não sabe se será doce ou amarga
“O ecocídio nos mostrará que estávamos errados. E chegará o apocalipse”, disse Paul Kingsnorth ao El País. Foi assim que ele se apresentou a nós, em plena pandemia, o mais próximo da sensação de apocalipse que muitos de nós já estivemos; reapareceu numa citação do livro A terra inabitável, de Foster-Wallace; e, não muito depois, veio o site do projeto Dark Mountain, que estacionou em uma barra de favoritos durante alguns meses até ser redescoberto, quase que por acidente, como uma pérola, algo que reverberou profundamente com nossa necessidade de delinear os caminhos da Casatrês.
Adentramos o texto do manifesto com a curiosidade de quem vê uma fruta pela primeira vez e não sabe se será doce ou amarga. Sentamos durante três ou quatro dias para ler o texto juntas, e ele se desdobrava em discussões que levavam a manhã inteira. Pela metade da leitura, começamos a nos perguntar: “será que alguém já traduziu isto?” e, assim que terminamos, mandamos um e-mail ousado para alguém do outro lado do mundo — Dougald Hine — perguntando se ele e Paul teriam interesse em fazer parceria com uma minieditora de uma ilha ao sul do Brasil. O resultado dessa conversa, e de mais de um ano de trabalho, está aqui.
A leitura do manifesto consolidou nossa perspectiva sobre a origem e possíveis desdobramentos do antropoceno. Desde o início da editora, que coincidiu com o início da pandemia, percebemos que seria impossível não falar sobre a grande crise: a de percepção da vida. Na verdade, o único jeito de tornar nosso trabalho viável e, portanto, coerente com o entorno, seria enfatizando temáticas e estéticas que nos ajudam a pensar o colapso e além dele. O projeto Dark Mountain faz exatamente isso e o manifesto demarca, justamente, a necessidade de encarar o abismo e aprender a atravessá-lo, usando as artes (principalmente a escrita) como ferramentas essenciais para sobreviver ao caminho.
“Escrever com sujeira debaixo das unhas”, para nós, significa que escrever é estar no mundo, caminhar, falar com os vizinhos, plantar e colher. E, assim como Paul e Dougald, acreditamos que a escrita que nos ajudará a atravessar os desafios deste século não será somente a dos dados, mas a que vem de dentro do nosso corpo, dos corpos das plantas e de outros animais, a que conta as histórias humanas dentro da história da Terra.
Em nossa breve jornada de quase 3 anos como editoras — e diagramadoras, revisoras, artesãs —, nos deparamos de maneira muito orgânica com os textos que publicamos. São como janelas que se abrem e deixam a brisa entrar, trazendo poeira e pólen e nos permitindo olhar para o que tem lá fora. E dessa forma, também, o manifesto veio até nós, nos inspirando a criar uma coleção, a INCIVILIZADA, para abrigar textos sujos de terra.
Incivilizar é reconfigurar o status do mundo. O ponto de partida, e a própria base, são simples: corpo e imaginário. Tem a ver com percepções do entorno, práticas e modos de vida. Incivilizar o corpo e o imaginário através de uma ética que, sobretudo, age para defrontar e se desviar de alguns fundamentos da civilização ocidental. Em síntese, defrontar e se desviar de visões de mundo calcadas em credos específicos, sumariamente antropocêntricos: dominação, universalização, extrativismo, expansão, progresso, sapiens soberano no cosmos. Corpo e imaginário, aqui, têm estreita relação com livros e leituras. Pois, através de uma escrita crua e aterrada, visceral e, muitas vezes, fragmentária, não convencional, os livros da coleção INCIVILIZADA pretendem ser a contrapartida das condições hegemônicas e colonizadoras de enxergar e enquadrar a vida. Buscamos a veia literária que estilhaça a pasteurização global, enraíza-se no próprio território, digere a diferença, corre junto com a Terra, em solo firme, e, presentificada, em corpo e consciência, absorve, interage, apropria, preserva, cocria, solidariza.
Negar o colapso não é uma opção, mas aceitá-lo como o fim de tudo é uma postura arrogante: é novamente usar a régua humana para medir o porvir. A tarefa árdua que se impõe sobre nossa espécie é a de aceitar a inevitabilidade do fim deste mundo — pois tudo o que procura sobrepor as leis naturais cairá por terra — e compreender que este não é o fim de todos os mundos. O futuro está em disputa. O vazio que se apresenta quando nos colocamos à beira do abismo, dispostas a encará-lo, é o que nos permite imaginar e resgatar narrativas que nos ajudem a atravessá-lo, valorizando e respeitando todos os seres que dividem a vida conosco.
Dougald e Paul escreveram o manifesto no outono do hemisfério norte, em 2008, durante o ápice de uma crise econômica que tem reverberações até hoje. A perspicácia do texto está em explicitar que a crise vista como meramente financeira era, na verdade, uma manifestação da crise civilizacional. Da mesma forma, entendemos que a pandemia, vista como crise sanitária (com consequências econômicas), é mais uma convulsão da civilização. A abertura dos autores em encarar e falar de uma perspectiva de futuro com sinceridade e não negacionismo, esperança ou fatalismo, foi o que nos inspirou a firme dedicação a este trabalho de tradução. O paralelo inevitável dos contextos foi a fagulha.
“Entendam o manifesto como uma bandeira hasteada para que possamos encontrar uns aos outros. Um ponto de partida, mais do que uma linha partidária. Um convite para uma conversa mais ampla que continue a nos levar por caminhos inesperados”*. Pensamos que o manifesto, apesar de escrito no contexto do projeto Dark Mountain, pode ser um texto guia, uma fonte aterramento para quem pensa e faz arte no fim deste mundo.
*Tradução livre de texto do site do projeto: “Think of it as a flag raised so that we can find one another. A point of departure, rather than a party line. An invitation to a larger conversation that continues to take us down unexpected paths.”
O texto que você acabou de ler é a nota da Casatrês à edição brasileira de Uncivilisation: The Dark Mountain Manifesto.
Descivilização: Manifesto Dark Mountain é nossa primeira tradução, resultado de mais de um ano de trabalho em comunicação com Paul Kingsnorth e Dougald Hine (e o tradutor e amigo Davi Tekle Scherer) idealizadores do projeto Dark Mountain (conheça). No texto, os autores trazem diversas referências poéticas e percepções da história para discorrer sobre os colapsos contemporâneos, buscando suas raízes na fundação da civilização ocidental. Inédito no Brasil até então, trata-se de um texto que alavancou o debate sobre a responsabilidade e relevância da arte — principalmente a escrita — em meio à crise civilizacional e biosférica.
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