PERDENDO TEMPO COM ESSA BESTEIRA
Conto do livro Chama com dois olhos andando, de Ezus, lançamento da Casatrês
Poeta potiguar, Ezus publica com a Casatrês seu primeiro livro de prosa (contos, crônicas, novela, o que mais?), Chama com dois olhos andando. No último sábado, no Instagram, fizemos uma live com o autor. Durante as próximas semanas, o livro estará em pré-venda, com frete grátis para todo o Brasil, e você pode adquiri-lo aqui.
Em abril, ainda sem dia e local definidos, Chama será lançado, na presença do autor, em Natal/RN. Depois a Casatrês viaja até Brasília para novo lançamento dessa pequena obra vertiginosa, brutal e corrosiva: estaremos na Feira Motim, ampliando Chama ao mundo.
Por enquanto, deixamos um gostinho do mais novo lançamento da Casatrês, nossa terceira ficção (ao lado, agora, de a casa que ela habita, de anajara, e A criatura, de João Gabriel Oliveira).

PERDENDO TEMPO COM ESSA BESTEIRA
Suas mãos são sumo escuro, suor e sujeira. Fermentam azedume e dignidade no mesmo lugar, reprovável, inconcebível, que faz virar o rosto pela cor e pelo cheiro. Preto, catador, nos cinquenta anos carrega cem a mais de vida alheia. Concebido, não nasceu menino, nasceu estatística, fadado ao fardo. Carregado pelo lixo que compõe certos errôneos conceitos, preconcebidos, decompõe-se carregando desde sempre camadas e camadas do lixo de luxos desconhecidos e inalcançáveis, que, estes sim, juntando-se àqueles conceitos, são de nascimento certo, começo e meio sem fim; foram meninos e crescem na insalubre mistura que se pretende pura: o tecido social.
O lixo, matéria reciclável, indômita mania de continuar a ser, insumo a partir do consumo, é além do enxofre e do carbono: é nojo, ranço, reprovação, agressão, rebaixamento. Às vezes ele pensa sou lixo que foi usado em outra vida e que esta é a sobra, e enche o carro: de papelão, de garrafa, de alumínio; afoga o pensamento no ímpeto de sobreviver. Ainda novo, era choro e chorume, saliva e suor, enchendo o vão invisível dos porquês: mar negro e mar morto nas alamedas que percorria. O sol secou as lágrimas, os anos ressecaram tudo. Tem amor pelo chorume, pelo líquido grosso que lhe desce o corpo, pela viscosidade nas mãos.
Viu negro morrer, branco morrer, facada em prostituta, fogo cruzado no meio da praça, droga de am a pm e mais uma centena de etcs: vive na rua mas recusa sê-la. Da multidão, perde-se; procura sossego, erra o caminho do erro, envolve-se no escuro apenas com a noite, e pensa e lembra. Hoje tô com cinquenta, diz, e encosta o carro com lixo carregado três vezes sua própria altura. Banha-se com um galão de água, refresca o rosto e ri: ainda fui até a quinta. E lembra uns poucos detalhes do colégio. Lê mal e assina o nome: resquícios de insistir no estudo. Quando a noite é longa, rabisca papeis com o próprio nome e sente leve prazer em ser identificado.
Hoje faz cinquenta — quantos já nas ruas? Fazer cinquenta é como fazer trinta, e vem aquela sensação de novo ciclo retumbando. Mas não nele, ele passou a tristeza, passou a espera na esquina dos anos, apenas observa e fica esperto para cruzar a próxima. Sorvida a sopa, masca o punhado de fumo e lembra alguns poucos detalhes da infância: a mesma sujeira escorria das mãos finas e jovens; a alegria de achar, no meio da choldra, um caderno de pintar, pintado; a surra da mãe perdendo tempo com essa besteira. Uma lágrima pensa sair do rosto enrugado e juntar-se ao peito aberto, fedendo a tudo: desiste e não cai: de nojo, retrai-se, torna-se colírio.
O Mercado acolhe também os seus cinquenta anos e oferta o mesmo lugar de sempre: o chão maciço, o odor de mijo, umas companhias perdidas. As horas passam, a noite adensa, a embriaguez e a loucura ganham espaço naqueles que o rodeiam. Isso não o interessa eu que não, e puxa um livro sem capa, meio estragado, que achou na tralha revolvida. A cabeça apoiada na roda do carro, seu instrumento fiel, família e vínculo. Passa à sua leitura titubeada.
Nu-ma Nu-ma ma-nhã manhã, ao DEspertar DE sonhos in-qui etanTEs, GGre-gó-rio Samsa Gregó-rio Samsa Samsa, DE u-por-si DE-u deu por si na cama tran-sfor-ma-do num-gi-gantesco in-seto
e como nada fizesse sentindo, repete desconfiando que era falha sua.
Nu-ma man-hã, ao DEs-per-tar De son-hos in-qui-e-tan-tes, Gre-gó-rio Gregor-io Sam-sa deu por si na ca-ma tran-sfor-mado num gi-gan-te sco in-se-to,
HA-HA-HA soltou, ta que é cada invenção, o rosto por um segundo infante e feliz, e continuou
Es-ta-va DE-i-ta-do so-bre o dor-so dorso dorso?, tão du-ro que pa-re cia re-ves-ti-do DE me-tal, duro feito metal, ha-ha-ha, quisso é uma maluquice arrombada,
e as horas passavam e em troca da má leitura recebia um pouco de esquecimento.
O livro, sem capa, apenas uma folha em branco na frente, era uma sedução para o seu nome. A página clara, embora manchada, seu nome em grafite negro. De olhos cansados, secos da leitura, ele busca o lápis comido nas pontas e faz que vai escrever, imitando o gesto várias vezes no ar. Treina para não errar as únicas palavras que sabe, que tanto o alegram de uma alegria simplesincera, e arrisca o rabisco, seu nome: João Silva. Jão Silva. Sim, é alguém, agora é alguém sou e hoje fez cinquenta.
Último lembrete: na próxima quinta, 23 (aniversário da Ilha), e sábado, 25, marcaremos presença na Feira Coletivo Elza com Borogodó, dentro da programação da Maratona Cultural de Florianópolis. No calçadão da Victor Meireles, montaremos nossa mesinha, com uma pilha de Chama com dois olhos andando, junto com nossas principais publicações. Amizades de Floripa ou de passagem por aqui, nos vemos lá!