água de romãs, terceiro livro da haimi
Nossa mais recente alegria — nova celebração do singelo, entre miudezas e silêncios, frutas, galhos, passagem do tempo, ventos e desimportâncias — está inscrita no terceiro livro da coleção haimi. Falo de água de romãs: haicais candangos, de kuzman (nome haicaístico de Luiz Antônio Gusmão).
Nascido em Recife e radicado em Brasília, kuzman é um dos principais nomes contemporâneos do haicai do centro-oeste brasileiro. Sua sensibilidade e sagacidade em unir a tradição e a inovação, o objetivo e o subjetivo e, principalmente, de moldar o retrato dos pormenores da vida do cerrado, ora em sua urbanidade, ora em suas características climáticas, estão presentes nos 138 haicais do livro, divididos em quatro seções: lágrimas de verão, porteira outonal, poeira invernal, trovões da primavera e luzes de ano-novo.
água de romãs ainda conta com o privilégio de um prefácio escrito por Carlos Martins, haijin (haicaísta) assíduo e refinado, apaixonado pela tradição, talvez nosso maior nome no trabalho de difusão do haicai no país.
Casatrês e kuzman terão, em sequência, dois eventos para trazer água de romãs ao mundo. Começamos na próxima quinta, 27, às 20h, com live no nosso Instagram, para proporcionar aquele tradicional e amistoso papo entre editor e autor, contar histórias, partilhar curiosidade, ler haicais. Nos dias 06 e 07 de maio, sábado e domingo, teremos o privilégio de participar da Feira Motim, que acontecerá em Brasília, DF. Os haicais candangos de kuzman, então, serão lançados presencialmente, em sua terra de origem.
Falar de água de romãs, para esta edição da niusleter, nos incita a contar um pouco da história da própria coleção, a haimi. Mas, antes de entrarmos nesse tema, façamos uma pausa, um respiro — e segue um aperitivo do nosso singelo lançamento.
entre folhas
borboletas ao sol
e latidoslua da madrugada
por trás da caixa d’água
cidade-satélitecheiro de pão novo
se espalhando pela casa
o outono chegou
Enquanto as louças são lavadas
haimi é uma das três coleções que colocamos no mundo até agora, junto com INCIVILIZADA e Tecnofagia. haimi, em tradução livre, é como “sabor de haicai”. Tem fundamento, portanto, na prática literária de origem japonesa, escrita em três versos. Apropriando-se desse sabor, amplificamos a forma: a coleção haimi pretende publicar livros de haicais e haibuns e expressões poéticas que recebem influência ou, de alguma forma, são próximas ao haicai. O norte, a simpatia e a influência da coleção é a tradição zen budista e a visão de mundo wabi-sabi, esta articulada sob os princípios de impermanência, imperfeição e incompletude, e ambos — zen e wabi-sabi — histórica e filosoficamente relacionados.
A proposta editorial e literária da haimi não visa apenas o encontro específico, “puro”, da cultura japonesa. Mas o encontro de clássicos e contemporâneos, de qualquer canto do Brasil ou do mundo, de autores/as diversos/as, caracterizados por certa coesão poética e orientação frente à vida. Em outras palavras, a estética simples e refinada, a experiência poética clara e direta, em confluência com o entorno, a pequena vida, a vida cotidiana.
A haimi surgiu num lapso, turbilhão encadeado de ideias, lampejos imagéticos. Em cinco minutos ou menos, estava concluída toda a ideia do projeto, enquanto eu, Felipe, lavava louça, numa noite qualquer de semana, em outubro de 2021. Tomado por assalto, virado do avesso, talvez eu tenha enxaguado mal algumas talheres e copos, deixado espumas de sabão em pratos e panelas. Fato é que a inspiração, feito furacão, veio, foi embora e me deixou de presente um potencial concretizável, ou uma missão a cumprir.
Carimbo de cigarra, carimbo de folha de amora, carimbo de romã
A ideia fixa revolvendo, apitando de hora em hora: livros de haicais, de haibuns; livros de bolso, de haicais e haibuns, com capa em tom claro e tipografia e ilustração carimbadas; uma coleção de livros de haicais e haibuns, cujo nome será haimi, em formato de bolso, capas carimbadas etc.
E o resultado é este: formato 14,2 cm x 10 cm, capa em papel Vergê madrepérola, 180g/m², com ilustrações simples (uma cigarra, uma folha de amora, uma romã) e tipografia que ganham vida através dos carimbos produzidos pela Burocrata. Miolo em papel pólen bold 90g/m², impresso em fonte Fanwood. E o detalhe final: lombada com um minibordado de um ícone que tenta fazer alusão a alguma imagem do livro (um asterisco, um galhinho seco, a coroinha da romã).
Enquanto as roupas secam e Fotossíntese da voz
Tudo fluiu tão bem que sequer precisamos ir atrás da primeira obra da haimi: ela veio até nós dois meses depois, encaixando-se perfeitamente na proposta, na estética. Enquanto as roupas secam, de William Feitosa Junior, foi a celebração de um encontro à luz da poética do menor: seus haicais e versos enxutos, enfim, concretizaram o singelo potencial da nossa coleção.
Depois veio Fotossíntese da voz, de Cristiane Guimarães, uma síntese de haicais e outros poemas-narrativas escritos durante o doutorado de Cris, do qual também se desdobrou uma versão digital chamada Caderno de notas: fotossíntese da voz (disponível gratuitamente aqui). Materializar a escrita vegetal da autora, dentro da haimi, fez perdurar nosso contentamento.
Deve haver sensibilidade para sentir o sabor
Pela estética simples, de poucos elementos, e com elementos imprecisos, imperfeitos, sentimos que os livros da coleção haimi são, pelo suposto baixo apelo visual, até agora os menos compreendidos dentre todos os que já publicamos. Aos olhos desacostumados com a beleza da simplicidade, com o valor de certa pobreza imagética, deparar-se com os livrinhos da haimi é enxergar um terreno baldio, ou um terreno deserto, ou (não) saborear um prato de comida sem tempero.
É um efeito comum, fruto de uma dinâmica, digamos assim, biológica: o costume da saturação embota a sensibilidade ao singelo, bloqueia a visão para a força do vazio. Mas a confiança é maior, e a esperança existe, porque sabemos que tais condições são plásticas, e um processo de reeducação do olhar, uma certa pedagogia que reinsere outras percepções sobre o que é belo, é possível — e nem mesmo difícil de executar. Basta abertura, entrega e, sobretudo, prática.
Assim também é com o próprio haicai. Filiados às expressões poéticas com quê de grandiloquência, há muita gente que não “entende”, ou leva tempo para “entender” o haicai. Após longo exercício, alguns passam a admirar, apreciar e praticar o haicai com aquele sentimento de conquista de terem sacado, por fim, o valor, o significado e a estética dessa tradição, antes subestimados e invisíveis aos próprios olhos e ao próprio gosto. Deve haver sensibilidade para sentir todas as nuances do sabor.
publicar esse livrim [diminuto em dimensões, gigante em espaço mental] com vcs, na coleção haimi, é das experiências mais gratificantes por que já passei. obrigado, felipe e marina! a coleção haimi há de tocar mtos leitores e despertar o cuidado e a atenção pelo que está a nossa volta, a todo momento.