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Não iam para a escola há meses, mas sabiam fazer conta. Se usassem o dinheiro de ontem para comprar o chocolate que venderiam hoje, levariam menos para casa. A consequência era conhecida: pontapés, humilhação, quem sabe até uma garrafa de pinga quebrada a lhes talhar o couro sujo. Papai não perdoava a preguiça. Parados no canteiro, à margem da avenida onde vendiam chocolate, contavam as moedas. A gente vai ter que entrar ali na loja e pegar umas barras. Gabriel, o mais novo, olhou para o irmão e esfregou os olhos com as mãos encardidas. Os olhos ardiam por causa do ar seco e poluído. Não viam chuva há semanas. Tô com sede. A gente pega uma água também.
Entraram na loja, João na frente, Gabriel com medo, direto ao cesto de chocolates em promoção, guardando-os na sacola onde tinham o dinheiro. Caminharam pelo corredor dos brinquedos e olharam os skates em silêncio. Abriram a geladeira para pegar duas garrafas de água gelada. Um segurança espreitava atrás das fantasias de carnaval. Foram até o caixa e entregaram uma barra de chocolate, a mais barata. Pagaram e iam saindo com sorriso no rosto, quando foram interceptados por Mendonça, o homem de roupas escuras, rádio e coturno que olhava a porta. O que vocês tem aí, seus merdinhas? Nada não, senhor, compramo esse chocolate aqui, só. Agarrou os garotos, um pelo pixaim, outro pelo bracinho magro, e os carregou até os fundos da loja. Os clientes desviavam o olhar e faziam não ouvir os gemidos de dor. Jogou-os para dentro da copa minúscula, onde Roger almoçava de roupas pretas e coturno, o rádio ao lado do prato. De novo, seus idiotas? Não pensaram em roubar outra loja, não? João e Gabriel tremiam, suavam, olhavam para o chão e não respondiam. O homem se levantou, pegou a sacola da mão de João e jogou no chão. Bateu a cabeça de um contra a do outro, segurando pelas orelhas, e chutou as costas de Gabriel, que caiu no chão sem ar, ao lado daquelas botas enormes do Mendonça. Olhou o couro, a borracha, os detalhes de metal que prendiam os cadarços. Como eram parecidas com as botas daqueles bonecos da seção de brinquedos, aqueles bonecos que nunca teriam. Aquela bota, tão parecida com os bonecos que queriam e nunca teriam, a mesma bota que o desdentaria em seguida. Já não via seu irmão, mas podia ouvir os gritos e pedidos de Para moço, por favor, a gente nunca mais vai voltar, prometo e a resposta de que pedir desculpa não adianta, Vocês vão ter que aprender na marra, intercalada pelo som das bofetadas. Vocês tão fodidos. Se eu encontrar essas fuça imunda lá no bairro, bato de novo, bato até não sobrar dente. Falava esganiçado, cuspia, espumava.
João era a cara de Cesinha, irmão de Roger, falecido em troca de tiros com a polícia na adolescência. Era delinquente desde os oito. Ele não, ele tinha recusado o caminho fácil. E não foi por falta de oportunidade: Cesinha tentou convencê-lo a ser aviãozinho quando tinha onze e, apesar da proposta tentadora, recusou. Limitou-se a fingir que era manco para pedir dinheiro no sinal da avenida principal. Quanto mais via Cesinha, mais espancava. Porque ele escolheu o lado certo. Já tinha dado uma segunda chance, eles que não souberam aproveitar. Ele recusou o caminho fácil e aproveitou a chance dele. Os meninos não tinham mais solução, caso perdido. Ele não, ele se esforçou. Ele se tornou um homem bom.