Das dificuldades de ser a Casatrês
Pequenos relatos do interior de uma editora caseira feita por duas pessoas
“No início, fizemos coisas horríveis.”
Esta é nossa forma de explicar como chegamos onde chegamos, em três anos de editora. Éramos muito limitados: uma bióloga e um comunicólogo/escritor que, apesar de serem ávidos leitores, nunca haviam notado que textos em um livro são hifenizados, ou que o formato mais comum de um livro não é exatamente uma folha A4 dobrada ao meio. Obviamente, também não tínhamos ideia de como diagramar um texto (os primeiros dois livros levaram semanas para ficar prontos); não sabíamos qual impressora comprar; não sabíamos como pedir um ISBN; não tínhamos ateliê, muito menos guilhotina, o que nos rendeu cadernos tortos e refiles abomináveis das primeiras edições. Nunca fizemos curso de nada, o que nos rendeu meses de estagnação em tarefas relativamente simples (e nas complexas também, como botar um site no ar, do zero), produções esteticamente duvidosas e tecnicamente falíveis.

Continuamos sendo só dois.
Costumam nos perguntar, quando vendemos presencialmente, se somos nós que fazemos os livros. Nossa resposta é: tudo, só nós dois. A maioria das pessoas que nos acompanha sabe que somos os únicos “funcionários” da Casatrês, e isso é bem intenso em alguns momentos. A todo momento, temos que nos desdobrar para dar conta de ler originais, revisar, diagramar, colocar produtos no site, imprimir, colar, encadernar, refilar, bordar, embalar, ir aos correios, responder mensagens, escrever niusleter, e estar minimamente presente nas redes sociais. Esta é, sem dúvidas, a parte mais difícil.
Nosso maior sonho é contratar uma pessoa para cuidar da comunicação da editora. Alguém que tenha afinidade com o nosso trabalho e com a delicada e laboriosa tarefa de vender o peixe quando o peixe é arte. Alguém que esteja atualizada e saiba do que realmente funciona nas redes, porque
Vender na internet está cada vez mais difícil.
Criamos o Instagram da Casatrês a partir do antigo perfil pessoal do Moreno, que tinha uns 500 seguidores. Três anos depois chegamos, penosamente, aos quase 3100 seguidores. O Instagram foi abandonado pela Meta, que agora só investe no second life Metaverso e não há perspectiva de melhorias na plataforma, muito menos em direção a algo mais amigável para projetos de arte e literatura. Na verdade, as mudanças que ocorrerem daqui para frente têm grandes chances de ser na direção exatamente oposta ao que consideraríamos ideal para a divulgação de livros, se tomarmos as últimas grandes alterações como referência (o crescente favorecimento de vídeos, culminando no atual modelo de vídeos rápidos como concorrência ao TikTok).
Já falamos, algumas vezes, sobre o quanto o Instagram tem um formato desfavorável para a divulgação de livros. Os principais fatores são a entrega pífia de conteúdo sem rostos ou que não seja em vídeo e o boicote de assuntos políticos ou palavras consideradas ofensivas/desagradáveis — uma lista crescente e impossível de acompanhar. Nunca sabemos quando é a h0r4 c3rt4 d3 e$cr3v3r 4$$1m. Aliás, essa é mais uma demonstração da inadequação da plataforma para receber texto que, unida à terrível experiência de leitura da legenda, tornam maçante a tarefa de falar sobre literatura.
E o que tem de mais comum em nossas tentativas de presença nas redes é passar o dia fazendo um conteúdo interessante para vender nosso trabalho e não receber um pedido sequer.
Talvez devêssemos ter ido para a área de TI.
Brincadeira.
Claro que nossa vocação é artística mas, às vezes, brincamos que as coisas seriam mais fáceis (financeiramente, pelo menos) se tivéssemos aprendido a programar. Escolhemos trabalhar com algo que não é prioridade para a maioria das pessoas, principalmente no contexto de precarização do trabalho (e da vida) no Brasil. Mais do que isso, escolhemos trabalhar com um meio de informação que perde bioquimicamente, digamos, para as redes sociais. Muita gente já não tem paciência e capacidade de foco para sentar e ler. Dias atrás uma amiga, ex-funcionária de uma livraria, comentou que é muito raro que as pessoas comprem livros grandes. “Elas até leem, mas buscam sempre algo fininho”. São raras as que se comprometem com algo mais longo ou mais difícil de digerir. Temos amigos que acham nosso trabalho lindo mas admitem que não conseguem mais ler, ou que não têm o hábito, ou que não têm tempo.
Publicando gente desconhecida (inclusive nós)
As autoras e autores que publicamos são, em grande medida, desconhecidas do grande público. São, muitas vezes, estreantes. São pessoas comuns. Ninguém que publicamos, até hoje, vive de escrita. Gostamos disso mas, como tudo o que fazemos, é difícil. Nosso alcance somente enquanto editora é insuficiente para vender uma tiragem completa, então contamos com a rede de amigos, familiares, conhecidos e semi-conhecidos do/a autor/a. Ainda estamos aprendendo a encontrar público fora desses círculos. O melhor que encontramos, até agora, foi vender presencialmente. Nada como poder tocar na pincelada de argila de a casa que ela habita ou na maciez do tecido de Retalhos. A materialidade é nosso maior trunfo.


Equilíbrio entre complexidade/beleza e custo
Já mirabolamos projetos gráficos que, hoje, agradecemos por terem ficado na gaveta. Uns porque exigiriam um trabalho descomunal, outros porque ficariam cafonas e, outros ainda, que seriam ambos. Um exemplo é a primeira ideia de capa do Retalhos, feita de um mosaico de tecidos reaproveitados de máscaras usadas na pandemia (obrigada Deus e Du Cazon pela luz do questionamento: “Galera, mas será que isso não vai dar muito trabalho?”).
(Ainda bem que o tempo passa e o erro ensina. No início, além de fazer coisas horríveis, fazíamos processos assustadoramente desnecessários, como dobrar folha por folha de um livro. Quando lembro, sinto calafrios.)
Mas, ainda hoje, a cada novo projeto, entramos em discussões profundas acerca do que será mais justo (nem trabalho demais, nem beleza de menos e um preço acessível). Temos conseguido encontrar essa medida mas, às vezes, surgem livros inevitáveis ao nosso coração de artesãos, como as pequenas coletâneas de haicais: muito trabalhosos e muito lindos, mas pequenos demais para serem cobrados pelo real trabalho que proporcionam. Eles são nossos xodós e não nos arrependemos de ter escolhido fazê-los dessa forma (capas tingidas e bordadas, pequenas folhas que precisam ser cortadas e ordenadas manualmente, furar com parafusadeira, costurar, refilar num tamanho menor que a guilhotina consegue medir etc.) mas, sinceramente, não podemos incluir mais nada com esse nível de dificuldade na nossa produção.
Persistência
Honestamente, não estamos na melhor fase da editora. Os desafios são crescentes e cumulativos, temos fechado os últimos meses com um saldo preocupante. Mas nos inspiramos nas plantas de calçada que aproveitam qualquer brecha para florescer e precisam de muito pouco para viver. Acima de tudo, acreditamos na força das palavras, no valor da materialidade, na preservação do analógico. Como leitores vorazes, é um prazer produzir livros. Nosso desejo e nossas ações são para que a cultura da leitura persista, apesar das irrefreáveis transformações dos meios de informação. E, por isso, ainda estamos aqui.
Por favor continuem a florescer, reverdecer e encantar com as palavras. O trabalho de vocês é único!